segunda-feira, 27 de março de 2017

Algo nº 1

     Parei a bicicleta e deixei-a encostar ao gradeamento de ferro com subtileza. Não a prendi com cadeado, não a amarrei. Na verdade, também não iria muito longe dali. Debrucei-me e vi a água que corria teimosa no vale que o riacho continuava a fazer dia após dia. Nunca tinha estado ali e, no entanto, sabia que aquele era um meu lugar. De tantos outros, mas sobretudo meu. E naquele instante era só meu, já que estava ali sozinha. Aquele lugar pertencia-me, mais do que eu pertencia àquele lugar.
     Estava um tempo ameno e isso ajudou-me a sentir confortável com a blusa que trazia. Tinha flores, a blusa. Azuis, pequenas, e ainda cheirava ao perfume que tinha posto de manhã. Mas mais do que o perfume da blusa, sentia a brisa nos olhos que entretanto fechava. E havia poesia nessa brisa. E no som que a água tinha naquele riacho. E na luz do sol que me acarinhava. E todo aquele momento me abraçava.
     Estava a viajar sozinha. Era a primeira vez que o fazia, a vida assim o tinha proporcionado. E naqueles dias, em que estive mais sozinha do que nunca, senti-me completa. Comigo.
     Esvaziei a minha mente. O mestre ensinou-me bem e creio que fui uma boa aprendiz. "Tens dentro de ti a poesia" disse-me ele. Pois tenho. Abro os olhos e absorvo as cores. O verde, sobretudo. Lembro-me de uma senhora, não me recordo o nome (já disse que tenho memória de peixe?) que, vendo-me um certo dia, teria eu uns 13 anos, a desabar como um baralho de cartas lançado ao vento e a desfazer-me em lágrimas, em sofrimento interior, me disse "Olha para o verde. Repara nos diferentes tons de verde que os teus olhos conseguem alcançar. Olha para o verde e sente-o a sossegar-te." E resultou. Resulta sempre! E naquele momento ainda mais, porque não me sentia um baralho de cartas como quando tinha 13 anos.
     Foi nesse momento que senti uma mão no ombro. Não tinha ouvido os seus passos, nem a minha visão periférica me tinha ajudado a identificar um novo elemento naquela pintura perfeita. Não me assustei nem me voltei para trás. Durante uns largos minutos ficámos assim. Eu encostada ao gradeamento de ferro a olhar o verde e ele com a mão no meu ombro.
   

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